"Demorei anos para aceitar que o momento mais duro da oncologia não é o da morte, mas aquele em que você vê pela primeira vez a imagem radiológica de uma metástase de alguém que se considerava curada," conta Drauzio Varella em um dos capítulos temáticos do seu livro de memórias ‘O Exercício da Incerteza’ (Companhia das Letras, 2023).
Aliás, nossa vida é um constante exercício de incertezas e quem não está pronto para lidar com elas sofre mais do que os que estão (ou se esforçam). Por meio das incertezas de sua vida, o autor reconstrói a trajetória profissional que começou como professor e fundador do colégio Objetivo (quem diria?); antes de virar sanitarista frustrado (segundo o próprio), médico oncologista e, atualmente, comunicador.
Com uma escrita concisa, clara e acessível, ele apresenta o passar dos anos da prática médica no Brasil, passando por capítulos que abordam:
as endemias clássicas
os anos de chumbo
o projeto genoma
a criação do SUS
a estratégia de saúde da família
o surgimento e crescimento dos convênios médicos
dentre outros temas sobre saúde, vida e morte.
Ao falar da sua relação de ex-fumante com o cigarro, nos mostra quão destrutiva foi (e é) o consumo do cigarro para a saúde pública, e lembra: "descontada a escravidão, não consigo ver crime maior na história do capitalismo internacional do que o comércio do cigarro".
Em um sistema de saúde feito para curar, em vez de prevenir, ele explora um tema que normalmente é tabu para brasileiros: a morte. Como pacientes, familiares e médicos lidam com ela? Sua visão, ele explica: “quando olho para trás, acho que só atingi a maturidade profissional quando deixei de encarar a morte inevitável como frustração suprema e passei a vê-la como o período em que a pessoa doente e seus familiares mais necessitam do médico sensível e preparado”.
E as causas da morte no Brasil? Hoje sabemos que o padrão epidemiológico é outro: a tríade obesidade, sedentarismo e envelhecimento criou bases para uma mudança radical, onde migramos daquele padrão das endemias rurais para o das doenças crônico-degenerativas. Mas será que o sistema de saúde, os médicos e a sociedade, atualmente, conseguiram acompanhar a mudança?
Como médico, sugere o que seria o profissional ideal e qual é o profissional real no país: "somos treinados para curar, não para lidar com as pessoas que vão morrer". Drauzio aponta ainda a postura de determinados médicos, que em certo momento da carreira, se tornam prepotentes, amargurados, pessimistas e desencantados com a existência. Quem conhece alguém assim em outras profissões? Eu também conheço tanto na educação quanto no terceiro setor.
O movimento associativo brasileiro e questões sociais também são tratados nas páginas do livro: entre histórias e curiosidades, descobrimos, por exemplo, que a formação de grupos ativistas para conscientização e defesa dos direitos dos portadores de HIV inspirou a criação de associações similares nos anos 90, abordando outras doenças como câncer, Alzheimer, diabetes, síndrome de Down, doenças raras etc. Enquanto médico em penitenciárias, Drauzio lembra que certa vez foi alertado por um ativista: "o que é a cadeia senão uma extensão a favela, aonde os favelados vão e voltam?"
"À medida que o nosso horizonte se encurta, aumenta a necessidade de nos concentrarmos no essencial" finaliza ele ao chegar na última etapa da vida e do livro.
E é isso: é talvez nos concentrando no essencial que possamos lidar melhor com uma vida repleta de incertezas como a que todos temos.
Gabriel Cardoso
Comments