'Navegar é preciso, viver não é preciso', disse Fernando Pessoa. Na nossa postura em relação às (não) possibilidades e ocorrências da vida é onde estará o nosso futuro.
As viradas de ano são geralmente acompanhadas por um processo simbólico que eu acho muito importante e até terapêutico, quando bem-feito: a reflexão sobre o ano que está a se encerrar e a definição de intenções para o ano que vai iniciar.
Eu faço isso de forma estruturada há muito tempo e esse processo tem se tornado, ao longo da vida, mais maduro, consistente e saudável, onde tenho aprendido muito a cada ano. Uma das coisas que aprendi, por exemplo, foi usar na minha vida o conceito de cisne negro, de Nassim Nicholas Taleb, que nasceu no livro que leva o mesmo nome. Cisnes negros basicamente são eventos de baixa probabilidade e alto impacto. Aquilo que normalmente não esperamos (ou até desconsideramos) pela reduzida possibilidade de ocorrer, mas que se ocorrem geram um grande impacto. Trazer a lógica do cisne negro para a vida é "não confundir a ausência de evidência com evidência de ausência".
Ter como premissa que vivemos em uma realidade impermanente, cuja compreensão que temos dela é limitada e parcial, contribui no processo de planejamento do próximo ano -- e para a vida -- e nos faz encarar os cisnes negros com maior flexibilidade e com antifragilidade, outro conceito de Taleb: sistemas antifrágeis ficam melhores com choques e estresse. Lidam bem e se beneficiam da aleatoriedade e da incerteza.
Já no âmbito público, os cisnes negros deram a cara logo no início do ano no Brasil, influenciando muito o a realidade e os planos da sociedade brasileira. Na primeira semana do ano, a ação de marginais, vândalos e radicais, atentando contra os Três Poderes da República. Na segunda semana, a descoberta de um rombo de aparentemente 20 bilhões de reais no resultado declarado de uma das mais tradicionais varejistas do Brasil, as Lojas Americanas. Se o primeiro cisne surgiu no campo político e o segundo no financeiro, um olhar sistêmico nos ensina que ambos já transbordam nos campos social, empresarial, acadêmico, cultural, ambiental etc.
E por falar em campo ambiental, John Elkington, um pensador que sigo e admiro, também sabe cunhar conceitos fortes. Ele é o pai do famoso ‘triple bottom line' (ou tripé de sustentabilidade) que diz que uma empresa deve medir seu resultado nos pilares social e ambiental, além do econômico que já era medido via 'bottom line' (a última linha da Demonstração de Resultados do Exercício [DRE] de uma empresa que mostra o lucro líquido). Esses pilares são conhecidos também como 3 p's, de people, planet and profit (pessoas, planeta e lucro) e foram as sementinhas plantadas em 1994 para a naturalização do ESG como prática nas empresas que vemos hoje.
Recentemente, o autor também trouxe outro conceito envolvendo cisnes, desta vez o verde, num livro que leva o mesmo nome. Assim como os negros, os cisnes verdes são eventos raros e de alto impacto, mas neste caso se trata de um impacto positivo no meio ambiente e na sociedade, que ajuda a trazer mudanças transformadoras para o mundo.
Cisnes verdes estão a serviço de um de capitalismo regenerativo (outro termo do grande John e que tenho usado em meu trabalho). É o capitalismo que se concentra na criação de uma economia sustentável, que regenere e valorize os sistemas naturais e sociais que a sustentam.
Capitalismo regenerativo certamente não é o que vimos no caso das Americanas, mas talvez o que se fará a partir daí. Regenerar não ocorre de uma hora para outra, leva tempo, mas tem um momento de início. A regeneração também parte do conceito de antifragilidade e só se inicia quando um padrão de resiliência é estabelecido. Uma diferença fundamental entre os cisnes e que conta a nosso favor é: cisnes verdes podem ser planejados, na maioria dos casos.
Saindo do âmbito público e voltando para o plano pessoal, quiçá nós também possamos adaptar a lógica do cisne verde no planejamento de nossas vidas e nossos projetos. É isso: que em 2023 sejamos capazes de criar mudanças transformadoras que regenerem áreas que talvez estejam abandonadas, descuidadas ou degradadas em nossas vidas.
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